Cinco de espadas. Era o momento decisivo, e ele não o deixou escapar. Com destreza, apanhou a carta do monte com a mão direita, cuja textura era robusta como um pernil e áspera como lixa. O baralho, testemunha silenciosa de incontáveis jogos, desvelava a história das partidas passadas em suas cartas gastas. Em seguida, abaixou suas cartas, e a vitória se revelou como um prêmio merecido.
Seus parceiros de jogo soltaram grunhidos de protesto, e suas vozes roucas ecoaram pelos corredores antigos daquela mina. Aquele era um lugar onde a labuta diária era tão constante quanto o fluxo do tempo. O interior do local, com suas cicatrizes de décadas de escavação, mantinha a história da mina em cada rachadura. A iluminação amarelada das lâmpadas incandescentes fazia com que as sombras dos mineiros dançassem nas paredes.
O vencedor, por sua vez, permitiu-se observar mais uma vez aquele local familiar, que testemunhava diariamente - a velha mina de prata. Os jogadores se reuniam à entrada dos túneis mais profundos, sentados à uma mesa de madeira envelhecida, manipulando cartas gastas de um baralho exausto. As paredes de pedra maciça se estendiam pela paisagem subterrânea, e, mais adiante, havia entradas numeradas, cada uma levando a um túnel onde ele passaria horas a escavar naquela madrugada serpenteando pelo subsolo.
— Fale, meu amigo — interveio seu cupincha de jogo, quebrando-lhe os devaneios.
— O que disse? — perguntou, perplexo.
— Perguntei se deseja uma nova partida ou se planeja iniciar seu trabalho logo — repetiu o colega.
— Bem, quanto mais cedo começar, mais cedo terminarei — respondeu o veterano, alisando sua barba grisalha.
Ergueu-se, dirigindo-se a um dos caixotes no canto da parede. Abriu-o e retirou suas ferramentas de trabalho - uma picareta enferrujada e o capacete de segurança amarelo, cuja superfície arranhada testemunhava os anos de serviço. A picareta, com seu cabo desgastado pelo suor e pelas vibrações da mineração. No caixote, permanecia um lampião a óleo, agora obsoleto devido à modernidade e à conveniência das lâmpadas elétricas. Enquanto organizava seu equipamento, seus colegas recolhiam o baralho e se preparavam para sair, mas não antes de fazer um alerta.
— Ei, pretende descer bem fundo hoje? — indagou o mineiro moreno e mais alto, dono do baralho.
— A cada incursão, desço mais fundo. É assim que a mina funciona — retrucou o velho, impaciente, enquanto ajustava o capacete.
— Entendo. Nesse caso, leve o lampião. As lâmpadas têm falhado nas profundezas recentemente; é melhor prevenir. Não quer se perder nas trevas lá embaixo — sugeriu, guardando o baralho no bolso.
— Assim o farei — respondeu ele, retirando o lampião e uma caixa de fósforos de seu esconderijo.
O lampião era uma lembrança de tempos em que a escuridão era a única companheira nas profundezas da mina, antes que a eletricidade iluminasse o caminho.
— Você tem certeza que quer descer lá em baixo sozinho? Você sabe, depois do acidente… — disse o mais novo dos mineiros — Encontraram o corpo de Judas massacrado lá em baixo… Ele estava irreconhecível. — terminou, o mineiro mais jovem, sua voz carregada de preocupação.
— Deixe de lado esses temores, garoto. Já dediquei mais tempo a esta mina do que você tem de vida. Um mero fantasma não irá me atormentar. Aquele homem estava à beira da insanidade, sem dormir ou comer por dias, murmurando delírios sobre a mina e praguejando contra todos. Provavelmente se lançou ao maquinário por conta própria e acabou com seu sofrimento. — afirmou, enquanto se encaminhava para os túneis.
— Judas nem sempre foi assim... — murmurou o jovem, lembrando-se das histórias que circulavam sobre o mineiro que havia perdido a sanidade nas entranhas da mina.
— Vamos embora, antes que ele se torne mais rabugento sem o trabalho — instruiu o mineiro mais experiente, e ambos partiram em direção ao elevador.
— Tenha uma boa madrugada, senhor — despediu-se o jovem, com uma pitada de preocupação em seu olhar.
— Até amanhã — respondeu o velho mineiro.
Os dois ativaram o elevador, que com suas engrenagens barulhentas, começou a subir.
Empunhou sua picareta, prendeu o lampião apagado na barra de seu macacão e adentrou os túneis, sem sequer suspeitar, do que estava por vir nesta noite.
Quatrocentos e doze... Quatrocentos e treze...
— Será que o sol já nasceu? — Indagou, solitário, enquanto prosseguia com a incansável tarefa de martelar a rocha com sua ferramenta, colhendo a rara fortuna de prata que, por sorte, acabou por encontrar.
Quanto tempo se esvaiu desde a despedida? Difícil dizer, naquelas profundezas, o fluir do tempo parecia ter cessado, e seria uma façanha além da capacidade humana perceber a aproximação de outro ser, dado que o mineiro havia se aventurado tão fundo nos túneis que qualquer som de chegada era abafado por toneladas de terra. Da mesma forma, qualquer grito seu teria sido um lamento mudo neste abismo.
Somente interrompeu sua laboriosa escavação quando alcançou a ambicionada meta pessoal, quatrocentos e treze pés de profundidade explorados. De certo modo, toda a solidão que o envolveu enquanto a picareta perfurava a antiga rocha foi superada por um suspiro orgulhoso, quase triunfante. Porém, seu triunfo se ofuscou quando as lâmpadas à sua volta começaram a piscar, e então…
As lâmpadas zuniram, vacilantes, e por fim, desligaram.
Ah, sim, as trevas, como são belas, as trevas.
Seu colega tinha razão, a corrente elétrica demonstrou fraqueza nas profundezas mais abissais da mina. No entanto, ele havia seguido o conselho, deixando a antiga ferramenta cair ao chão, gerando um tilintar que ecoou pela cavidade subterrânea. Com as mãos tateando em busca de seu macacão, ele manteve a tranquilidade, apesar do crescente desespero. Por mais que resistisse à ideia, sabia que a idade avançada havia cobrado seu preço, e sua memória já não era a mesma. Entre os inúmeros corredores da mina, poderia passar muito tempo até que o encontrassem, tempo além do que ele próprio dispunha, e isso lhe causava um nó na garganta.
Com a habilidade de um homem familiarizado com o equipamento, desprendeu o lampião e, com um único movimento, fez uma chama vacilante ganhar vida. Uma luminosidade tênue, tremeluzente, encheu o espaço. Inspirou profundamente, controlando a angústia que crescia, mantendo o controle da respiração, enquanto, com uma mão, direcionava a frágil luz pelo labirinto de túneis sombrios.
A alaranjada luz do lampião banhava o desgastado chão de pedra, enquanto respirava com crescente ansiedade, seus passos cautelosos iniciais se transformando em uma caminhada frenética. Tentava desesperadamente recordar o caminho, mas a confusão tomava conta, virou à esquerda ou à direita, ou teria sido o oposto? O ritmo de seus passos se tornou uma corrida, sua respiração agitada como um furacão. Onde estava a saída? Gotas de suor frio começavam a escorrer de sua testa. O medo… A ponta de seus dedos esfriava com a ansiedade crescente. Não um medo comum, mas um medo interior, infantil, trancado a sete chaves, ressurgiu impiedosamente. Ele tentou negá-lo, reprimi-lo, fingir que não existia, mas agora ele estava lá, mais real do que nunca, consumindo-o como uma chama insaciável. Seu desespero cresceu, a escuridão o envolveu, e ele estava perdido, lutando contr- CRACK.
O silêncio envolvia-o como um manto. Com um movimento inadvertido, ele abaixou o olhar, surpreendendo-se ao perceber no que havia acabado de pisar. Seu olhar repousou sobre um caixote quebrado, e sua perna, agora ferida pela madeira acidentada, foi a prova de seu descuido. No entanto, algo o prendeu: um objeto solitário, repousando no interior do caixote despedaçado. Sangue respingava sobre a capa do item, uma lembrança cruel de sua lesão. Com dificuldade e uma expressão de dor contida, ele libertou sua perna dos destroços, revelando um corte diagonal que atravessava a panturrilha da direita até a esquerda. Rápido como um pensamento, ele arrancou a camisa do torso suado e a transformou em uma improvisada compressa, enrolando-a firmemente em torno de sua perna.
Ele respirava rápido, nervoso, seu coração velho batia rapidamente. Então, se colocou a respirar fundo novamente, tentando acalmar a si mesmo, respirando fundo… E inspirando fortemente.
Cuidadosamente, ele apanhou o objeto que chamou sua atenção: um caderno, com uma capa manchada de seu próprio sangue. Sua perna repousava dolorosamente sobre o chão frio e úmido da mina, ao lado de algumas marcas de estranhos arranhões nas paredes de pedra maciça. Com um suspiro entrecortado, ele apoiou o lampião ao seu lado, deixando que sua luz trêmula revelasse um vislumbre do conteúdo do caderno. Sua respiração estava pesada, carregada de ansiedade enquanto segurava o caderno com mãos trêmulas e o abria. No fundo, ele desejava que as palavras escritas pudessem iluminar seu caminho tanto quanto a luz incerta do lampião.
O caderno apresentava sinais de desgaste severo, com páginas arrancadas e outras completamente riscadas de forma caótica. Ao passar para uma parte parcialmente legível, se colocou a ler o conteúdo.
“Hoje, mais um dia na mina. Meu cantinho! Mas… Às vezes, vejo algo, como uma onhmribassyaiw, mas quando encaro, some. Será que tô perdendo os parafusos*?”***
Com dedos trêmulos, virou a página com crescente preocupação, olhando para os lados no corredor, para ver apenas escuridão, mas ainda assim, sentia um arrepio:
“As luzinhas tão zuando direto. Quando fica escuro, sinto algo esquisito. O lampião tá sendo meu compadre. Enquanto ele treme, tô trancudo. Mas medo que apague.”
Intrigado, porém aterrorizado, deslizou os dedos ensanguentados sobre a próxima página, enquanto tentava ler, batia seu pé no chão, sem cessar, inquieto:
“Hoje, trombei com umas marcas de unha nas paredes dos buracos. Fundas, fundas, fundas, como se um coisa braba tivesse rasgado a pedra. Sinto que o trem tá chegando perto. perto. perto. perto.”
Segurando a respiração, ergueu o lampião para examinar as marcas que se estendiam pelas paredes, enquanto uma prece silenciosa pairava em sua mente, suas mãos tremiam, vacilavam, e a temperatura de seu corpo baixava, na mesma medida que o medo aumentava. Ao virar a página, a revelação foi angustiante:
“Num dá mais pra negar. A COISA tá quase na cola. Ele não enxerga direito— Minha única saída é seguir as setas de orientação e achar o caminho de volta pro elevador. SAISAISAI. SHHHHHHH silêncio - JD.”
Finalmente, o diário revelou sua última página a qual era impossível a leitura. Pois o que quer que estava ali registrado, foi tomado por uma grande mancha de sangue seco, e este definitivamente não era o seu.
Assustado, não, completamente amedrontado, em um movimento impulsivo arremessou o objeto para longe, perdendo foco de sua respiração, e tornando a respirar como um tufão.
Com muita pressa, ele se ergueu com dificuldade, desejando ardentemente sair dali o mais rápido possível. Enquanto tentava, de forma falha, manter a calma.
Mancando, ele se arrastou pelo túnel levando o lampião e sua última esperança consigo, ele respirava de forma acelerada, amedrontado, ele desejava ir embora, se apoiando na parede do local se arrastava deixando um rastro de sangue pelo ambiente, enquanto tateava a parede e a iluminava, passando a mão pelas marcas misteriosas de garras, e ele definitivamente não gostaria de ver o que as fez em primeira mão. Então, por algum golpe de sorte, seus dedos calejados encontraram algo: uma seta esculpida na rocha. Poderia ser sua mente brincando consigo, mas naquele momento, sua esperança renasceu. A chama tímida do lampião pareceu ganhar vida por um instante.
Subitamente, as luzes retornaram e se apagaram novamente, a eletricidade ainda não havia sido restabelecida, e para seu azar o painel elétrico ficava lá na superfície, fora de alcance. As lâmpadas começaram a piscar freneticamente, e então um som gutural ecoou pelos corredores da mina, como se uma fera terrível rondasse nas sombras. O ruído parecia vir de todas as direções, tornando impossível discernir a origem. O ruído não era apenas um som simplório, ele era intenso, forte tão forte que era possível sentir o chão tremer, sentir o coração bater mais forte, sentir a morte iminente. O pobre homem empalideceu diante do som, lágrimas vacilaram escorrer de seu rosto, lágrimas de temor, e mesmo com uma ferida aberta em sua perna, não hesitou em seguir as setas esculpidas, desesperado por uma chance de escapar daquele pesadelo, mesmo que isso significasse correr sem rumo pela escuridão enquanto estava com uma ferida aberta, que banhava o chão de vermelho carmim.
Ele se lançou adiante com esperanças renovadas, a dor em sua perna uma cruel lembrança de sua fragilidade. As setas esculpidas na pedra eram seu guia, sua única conexão com a salvação, mas o medo crescente começava a enraizar-se em sua mente. A dança da chama do lampião era um sinal inquietante, ameaçando apagar a qualquer momento.
No entanto, um terrível BAM! BAM! BAM! reverberou pelos corredores escuros. Passos pesados e apressados, uma presença que se aproximava com brutalidade, e o velho mineiro sabia que o tempo estava se esgotando. Cada passo era um tamborilar em seu peito, e o som ecoava em sua mente como um aviso de que algo terrível se aproximava.
Ele diminuiu o ritmo, forçando sua perna ferida a continuar, mas no fundo, já estava aceitando os fatos. Estava sozinho, ferido e perseguido por uma fera das profundezas. A chama do lampião, trêmula como seu próprio coração, ameaçava apagar - a sua última linha de defesa entre ele e o desconhecido.
E então, BAM! BAM! BAM! Os passos implacáveis se aproximaram rapidamente. O mineiro sentiu como se uma onda de choque percorresse todo o seu corpo, da cabeça aos pés, fazendo com que todos os pelos de seu corpo ficassem arrepiados. Não havia escapatória imediata. Como último recurso, ele se enfiou
silenciosamente em uma curva do túnel e prendeu o folêgo. Os passos ressoavam, um encontro iminente. BAM! BAM! BAM! A fera passou reto pela curva, e o velho homem soltou a respiração, sem ousar espiar o que era aquilo, pois, o cheiro pútrido do ser já era torturante o suficiente. Seu corpo estava exausto, ansiava por descanso, ele sentia seus músculos gritarem, seus ossos rangerem, almejando, implorando para que ele desistisse. Os sons se distanciaram, e os rugidos se desvaneceram na escuridão.
Ele sabia que havia escapado por pouco, e apesar de todos os pesares, das dores, do medo, ele não poderia desperdiçar essa chance. O medo aos poucos se transformou em uma espécie de combustível, que não lhe permitia parar, com determinação, ele se levantou e continuou sua jornada. E então, ele vislumbrou, a luz da lua vazando pelo poço do elevador e isso renovou suas forças. O lampião brilhava com mais intensidade seu coração parecia que iria lhe escapar pela boca, sua hiperventilação se tornou em uma respiração alegre, com um sorriso aliviado no rosto, colocou-se a correr o mais rápido que podia, que por consequência do seu ferimento, não era muito, por um momento, ele se sentiu jovem novamente, vivo, a adrenalina consumiu seu sangue, suas pupilas dilataram, ele almejava seu objetivo, sua salvação, mais do que qualquer coisa.
No caminho sua perna ferida começou a falhar, o que lhe fez desacelerar e prestar atenção no ambiente ao seu redor, e então, ele viu, a mesa de madeira, onde tudo havia começado naquela noite fatídica. Usou uma cadeira como uma muleta improvisada e seguiu mancando até o elevador. Com mãos trêmulas, apertou o botão para chamar a máquina. O mecanismo rangeu, fazendo um barulho estrondoso que parecia ecoar pelas entranhas da mina. Então, outro rugido ecoou das profundezas, os passos se aproximando com ferocidade - BAMBAMBAMBAM. Aquele som fez, novamente, todo seu corpo ser arrepiar, ele sentia a vibração do chão, ele sentia que ela estava vindo. Havia chegado tão longe, não poderia desistir agora. Para lhe ganhar tempo, lançou a cadeira com força na direção do som, na esperança de distrair a fera por um breve momento.
A cadeira se despedaçou em mil pedaços ao atingir algo no meio da escuridão, uma figura que ele não conseguiu discernir completamente, afinal, seus olhos já não eram os mesmos. O lampião tremulou, os passos cessaram, e um breve silêncio pairou no ar. A criatura parecia momentaneamente distraída. Era tudo o que ele precisava. A máquina finalmente descera.
Arremessou-se para dentro do elevador, sentando contra a grade de segurança, olhando para cima e vendo a luz prateada da lua. A esperança renasceu, ele havia conseguido. Seu coração acelerado anunciava seu triunfo, ergueu o lampião para se orientar e… A fera lá estava, coberta por mil estilhaços da cadeira, pelo visto, o senhor não era o único que conseguia ser silencioso, eles se entreolharam por um momento, a criatura estava entre sua mão e o botão de subida, ela se aproximou lentamente, sua garganta fechou por completo, ele se sufocava em lágrimas e tremia completamente dominado pelo terror, ele esperneava, batia as pernas, as mãos e balbuciava pragas, até que… Ele parou, era inútil, o senhor respirou fundo, e fechou os olhos, deixando suas últimas lástimas escorrerem, e então, a fera assoprou gentilmente, e a chama do lampião se apagou.
— @nafframes.










passou de 3 linhas eu n leio kkkkkk